Informativo - Leituras

UM CONVITE À LEITURA E À PRODUÇÃO

08/05/2023
UM CONVITE À LEITURA E À PRODUÇÃO

As aulas de literatura do Colégio Contemporâneo tem como foco o Ato de Ler e a Leitura Literária como uma forma de acesso à cultura elaborada e humanização do sujeito que deve provocar inquietações, questionamentos e transformações, revelando a realidade da essência humana. Essa leitura dá-se a partir dos  diferentes gêneros literários: Narrativo, poético ou dramático.

            Nesse processo, o professor, age como facilitador da leitura, e o aluno como alguém que busca dar sentido a sua leitura, com base em seu conhecimento de mundo. Contudo,  as orientações do professor, negociam o sentido do texto. Esta relação dialógica  permeada pelo texto é que coloca diante do professor e do  aluno, e suas respectivas realidades culturais, as condição de negociação do sentido do texto, tendo o docente como orientador desta relação.

 

Vale lembrar que a leitura do texto literário demanda o conhecimento da própria linguagem literária, assim como as suas funções. De acordo com Antônio Candido(1967) a compreensão daquilo que lemos modifica-se  na medida em que ficção e realidade se encontram e nos possibilitam  e nos oferecem novas possibilidades de enxergar a realidade.

O Ato de Ler, contudo só ocorre, de  acordo com Demerval Saviani(1991),  se o leitor tiver conhecimentos que o permitam ir para além daquilo que está aparente no texto e possa fazer relação com outras leituras e chegar a síntese de seu conhecimento.  Isso ocorre a partir da  apropriação da cultura, da linguagem e dos signos, resultando em atividades mentais que, por meio de um processo dialético que envolve a aprendizagem vão transformando as funções psicológicas elementares em funções psíquicas superiores, (Martins, 2011).

 Nesta perspectiva, o espaço escolar desempenha um papel fundamental, pois é a partir da aprendizagem escolar que o sujeito tem a possibilidade de se apropriar de elementos necessários para desenvolver as funções psíquicas superiores e se humanizar. Acerca da leitura Manguel (1997, p. 85) afirma que os métodos pelos quais aprendemos a ler não só encarnam as convenções de nossa sociedade em relação à alfabetização – a canalização da informação, as hierarquias de conhecimentos e poder, como também determinam e limitam as formas pelas quais nossa capacidade de ler é posta em uso. Assim, o Ato de Ler permite que o sujeito desvele os vários sentidos e significados socioculturais expressos por meio dos signos e da linguagem literária.

A experiência a seguir é resultado da leitura literária nas  séries do Ensino Médio, quando o aluno deve estar apto a reconhecer as diferentes funções da linguagem  e desenvolve a habilidade  de ler o texto literário a partir de sua linguagem em busca dos sentidos nele implícito.

Neste exercício o aluno não só lê o texto, mas o analisa a partir de sua estrutura. No caso do conto, pertencente ao Gênero Narrativo, escolhido do trimestre para a leitura, foi necessário o conhecimento prévio de sua estrutura, bem como do contexto em que foi escrito e de seu autor – elementos indispensáveis que devem fazer parte do repertório cultural, ou daqueles conhecimentos prévios, conforme já dito, que  permitam ao leitor transcender  aquilo que está aparente no texto e estabelecer relação com outras leituras, chegando à  síntese de seu conhecimento

REFERÊNCIAS

CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967.

MARTINS, Lígia Márcia. UNESP. O Desenvolvimento do psiquismo e a Educação Escolar: contribuições à luz da Psicologia Histórico-Cultural e da Pedagogia Histórico-Crítica. 2011. 249 f. (Tese Livre docência), Bauru, 2011.

SAVIANI, D. Educação: do senso comum à consciência filosófica. 10. ed. São Paulo: Cortez, 1991.

 

CONHECENDO O AUTOR E SUA OBRA

             O texto lido pelos alunos do Ensino Médio do Colégio Contemporâneo neste trimestre “o anão no televisor”, de autoria do escritor sul-rio-grandense, Moacyr Scliar, sétimo ocupante da Cadeira nº 31, da Academia Brasileira de Letras, eleito em 31 de julho de 2003, na sucessão de Geraldo França de Lima e recebido em 22 de outubro de 2003 pelo Acadêmico Carlos Nejar. Faleceu em 27 de fevereiro de 2011, em Porto Alegre, aos 73 anos. 

Conforme sua Biografia no portal da Academia, o escritor Moacyr Jaime Scliar nasceu a 23 de março de 1937, no hospital da Beneficência Portuguesa, em Porto Alegre (RS). Seus pais, José e Sara Scliar, oriundos da Bessarábia (Rússia), chegaram ao Brasil em 1904. Filho mais velho do casal, que teve ainda Wremyr e Marili, desde pequeno demonstrou inclinações literárias. O próprio nome Moacyr já é resultado dessa afinidade. Foi escolhido por sua mãe Sara após a leitura de Iracema, de José de Alencar, significando “filho da dor”. Ele próprio dizia: “os nomes são recados dos pais para os filhos e são como ordens a serem cumpridas para o resto da vida”.

Em 1943, começou os estudos na Escola de Educação e Cultura, também conhecida como Colégio Iídiche, onde sua mãe chegou a lecionar. Em 1948, transferiu-se para o Colégio Rosário, um ginásio católico.

Em 1955, foi aprovado no vestibular de Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde se formou em 1962. Especialista em Saúde Pública e Doutor em Ciências pela Escola Nacional de Saúde Pública, exerceu a profissão junto ao Serviço de Assistência Médica Domiciliar e de Urgência (SAMDU).

Casou-se, em 1965, com Judith Vivien Olivien, com quem tem um filho, Roberto.

Foi professor visitante na Brown University (Department of Portuguese and Brazilian Studies) e na Universidade do Texas (Austin), nos Estados Unidos. Freqüentemente é convidado para conferências e encontros de literatura no país e no exterior.

Seu primeiro livro, publicado em 1962, foi Histórias de Médico em Formação, contos baseados em sua experiência como estudante. Em 1968 publica O Carnaval dos Animais, contos, que Scliar considera de fato sua primeira obra.

Autor de 74 livros em vários gêneros: romance, conto, ensaio, crônica, ficção infanto-juvenil,  escreveu, também, para a imprensa. Obras suas foram publicadas em muitos países: Estados Unidos, França, Alemanha, Espanha, Portugal, Inglaterra, Itália, Rússia, Tchecoslováquia, Suécia, Noruega, Polônia, Bulgária, Japão, Argentina, Colômbia, Venezuela, Uruguai, Canadá e outros países, com grande repercussão crítica.

Teve textos adaptados para o cinema, teatro, tevê e rádio, inclusive no exterior.

Foi, durante 15 anos, colunista do jornal Zero Hora, onde discorria sobre medicina, literatura e fatos do cotidiano. Foi colaborador da Folha de S. Paulo desde a década de 70 e assinou  uma coluna no caderno Cotidiano.

Duas influências são importantes na obra de Scliar. Uma é a sua condição de filho de imigrantes, que aparece em obras como A Guerra no Bom Fim, O Exército de um Homem Só, O Centauro no Jardim, A Estranha Nação de Rafael Mendes, A Majestade do Xingu. A outra influência é a sua formação de médico de saúde pública, que lhe oportunizou uma vivência com a doença, o sofrimento e a morte, bem como um conhecimento da realidade brasileira. O que é perceptível em obras ficcionais, como A Majestade do Xingu e não-ficcionais, como A Paixão Transformada: História da Medicina na Literatura.

 “Cada leitor da obra do Scliar tem seu gênero preferido. Mas todos reconhecem nele, acima de tudo, seja na ficção, no ensaio ou na crônica, um estilo altamente humanista, que o torna dono de valores universais”, segundo o escritor gaúcho Luiz Antônio Assis Brasil, para quem a ABL, ao aceitá-lo como imortal, fez justiça não só ao Rio Grande do Sul, mas também ao grande escritor que ele foi, capaz de introduzir na literatura brasileira a contribuição que outros escritores de origem judaica deram à literatura mundial. Sua ficção insere a temática do imigrante judeu e urbano no imaginário da literatura sul-rio-grandense.

Moacyr Scliar é considerado um dos escritores mais representativos da literatura brasileira contemporânea. Os temas dominantes de sua obra são a realidade social da classe média urbana no Brasil, a medicina e o judaísmo. Suas descrições da classe média eram, frequentemente, inventadas a partir de um ângulo supra-real.

Principais Prêmios
Prêmio da Academia Mineira de Letras (1968), Prêmio Joaquim Manuel de Macedo (Governo do Estado do Rio, 1974), Prêmio Cidade de Porto Alegre (1976), Prêmio Érico Veríssimo de romance (1976); Prêmio Brasília (1977), Prêmio Guimarães Rosa (Governo do Estado de Minas Gerais, 1977); Prêmio Associação Paulista de Críticos de Arte (1980); Prêmio Jabuti (1988, 1993,  2000 e 2009); Prêmio Casa de Las Américas (Cuba, 1989) pelo livro A Orelha de Van Gogh; Prêmio PEN Clube do Brasil (1990), Prêmio Açorianos (Prefeitura de Porto Alegre, 1997 e 2002). Seu romance A Majestade do Xingu, que narra a história de Noel Nuttles, também judeu e médico sanitarista, além de renomado indigenista, recebeu o Prêmio José Lins do Rego, da Academia Brasileira de Letras (1998); Prêmio Mário Quintana (1999); Prêmio Jabuti (2009) por "Manual da paixão Solitária".

 

O TEXTO E A LEITURA

TEXTO

O ANÃO NO TELEVISOR

Moacyr Scliar

 

Ser um anão e viver dentro de um televisor – ainda que seja um televisor gigante, em cores – é terrível; mas tem pelo menos uma vantagem: quando o aparelho está desligado a gente pode observar, através da tela, cenas muito interessantes. E sem que ninguém nos veja – quem é que vai reparar num televisor desligado? Se reparassem, veriam – lá no fundo, lá onde some o pontinho luminoso quando o aparelho é desligado – os meus olhos atentos. Olhar é o que faço durante o dia. À noite... Bom.

Foi Gastão quem trouxe o televisor para o apartamento. O apartamento é enorme – um exagero para um homem que vive só (aparentemente só) – e em cada aposento há um televisor. Gastão pode ter quantos televisores quiser; ele agora é o dono da loja. A morte do pai obrigou-o a abandonar o curso de arte dramática (onde, aliás, eu o conheci) para tomar conta dos negócios.

É uma loja muito grande.

Gastão assim a descreve: no subsolo, bicicletas, motos, barracas, artigos de caça e pesca. O primeiro piso é o 82 território dos televisores; há cerca de oitenta em exposição, em filas – um batalhão de televisores, de todos os tamanhos e formatos, coloridos ou P&B, todos ligados no mesmo canal. Uma cara sorridente – oitenta caras sorridentes; uma arma disparando – oitenta armas disparando. Quando o vigia desliga a chave geral fogem as oitenta imagens, ficam escuras as oitenta telas. De nenhuma – e isto Gastão me repete constantemente –, de nenhuma espreitam olhos. De nenhuma – diz, um tom de censura na voz. De nenhuma! – muito desgostoso.

Tomar conta da loja é uma coisa muito angustiante para Gastão. Quando volta para o apartamento tudo o que quer é tomar um banho, vestir o chambre de seda e bebericar um uísque. A tudo assisto daqui, de entre fios e transistores – louco para tomar um uísque, também, mas me contendo. Só posso sair de meu esconderijo depois que os empregados se despedem. E aqui fico, incômodo. Mesmo para um anão o espaço é pequeno.

 (É curioso eu ter lembrado essa frase. Era a minha primeira fala na peça em que Gastão e eu trabalhávamos. Ele entrava, com aquele jeitinho dele, abria uma mala que estava a um canto – e eu aparecia, dizendo: puxa vida, mesmo para um anão isto aqui é pequeno! Ele sorria e me tomava nos braços. Isso noite após noite.)

Agora, noite após noite, e dia após dia, tenho de ficar aqui, escondido no televisor. Dou graças a Deus que ele me traz comida – uns sanduíches muito mal preparados e leite frio. Leite frio. É pirraça, que eu sei.

Os empregados já apareceram na porta, já perguntaram se o patrão precisava de alguma coisa, ele já disse 83 que não, que não precisava de nada, os empregados já se despediram, já se foram – e ele ainda não veio me tirar daqui. Eu poderia sair sozinho, se quisesse. Mas não quero. Ele sabe que tem de vir me buscar. Mas não, se faz de bobo. Desde que se tornou homem de negócios. Arrogante, examina o copo contra a luz. E é bonito, esse diabo... Barba bem aparada, unhas manicuradas – é bonito, reconheço, o coração confrangido. É bonito – mas não vem me buscar.

Soa a campainha.

Claro – ele demorou tanto que a campainha acabou tocando. No fundo, era o que ele queria. Levanta-se, com um suspiro – mas é fingido, esse safado! –, e vai abrir a porta.

Ouço algumas exclamações abafadas e logo ele volta, acompanhado de um casal. Não conheço... Mas é gente humilde, vê-se. O homem é jovem, vestido de uma maneira que provavelmente supõe elegante – paletó quadriculado, calças roxas, sapatos (e não é anão!) de salto alto, gravata vermelha. O vestido dela é mais simples. E é bonitinha, ela; tipinho de balconista, mas simpática.

Gastão convida-os a sentar. Sentam tesos na beira de poltronas. A conversa é difícil, espasmódica. Do que dizem deduzo que são, os dois, empregados da loja. Se casaram. Conheceram-se no serviço, trocaram olhares apaixonados entre as bicicletas e as motos (são do subsolo) e acabaram casando. Agora vêm visitar o patrão.

 (É muito boa! Se eu não estivesse aqui preso, daria boas gargalhadas. Visitar o patrão! É muito boa!)

Contam sobre a lua de mel; passaram-na em Nova Petrópolis. Descrevem com algum detalhe o galeto que comeram na casa de um tio.

 Prolongado silêncio.

A moça se levanta. Corando, torcendo o lenço nas mãos, pergunta onde fica o banheiro. Gastão, gentil, levanta-se para mostrar o caminho.

Volta ao sofá, senta todo enroscado, como um gato. Como um gatinho manhoso. O empregado – até então quieto, imóvel – começa a falar. Seu Gastão, eu tenho um problema, ele diz. Seu Gastão, eu lhe conto porque o senhor foi um pai para mim, o senhor me deu uma televisão de presente de casamento. Seu Gastão...

Conta o problema, que consiste em a mulher ser frígida. Conta o problema e afunda a cabeça entre as mãos.

Gastão, compreensivo, pede-lhe que venha sentar no sofá.

 – Aqui, perto de mim. Vamos conversar.

Voz baixa, um pouco rouca, brilho de simpatia nos olhos – é um artista, esse Gastão! Aprendeu muito no curso de arte dramática. Era o melhor aluno... Mas espera aí – o que é que ele está dizendo?

Está dizendo que isso de frigidez é um problema comum, que acontece com muitas mulheres. Que as moças nem sempre estão preparadas para o sexo.

 – Mas não deves te preocupar – acrescenta, pegando a mão do rapaz. – És um homem bonito...

Mas que ordinário, esse Gastão! Na minha cara! E a moça, que não vem nunca! Me ocorre: está no banheiro, dando tempo a que o marido peça conselho ao patrão. Combinaram antes, os idiotas!

 É preciso fazer alguma coisa, e faço. Me mexo dentro do aparelho, produzo estalos e rangidos.

 – Que foi isso? – o rapaz se põe de pé num pulo.

 – Não te assusta – diz Gastão. – Esse televisor está com defeito.

Olha a tela – me olha –, vejo o ódio em seus olhos.

Tu me pagas, anão – ameaçam os olhos. Lindos, os olhos.

– Amanhã ele vai para o depósito. Vem, senta aqui. Mas o empregado não senta. Ficou muito nervoso, não consegue encarar o patrão.

 – Nunca pensei que o senhor, seu Gastão...

A mulher volta. O rapaz pega-a pelo braço, diz que está na hora, que precisam dormir cedo. Despedem-se, vão. Gastão fica sentado no sofá, bufando de ódio. De repente, atira o copo longe, levanta-se, aproxima-se do televisor. Olha a tela – mas não me olha.

 – Este aparelho já foi bom. Mas já deu o que tinha que dar. Acho que nem funciona mais.

– Não, Gastão! Aperta o botão. Mil choques me fazem gritar. Fagulhas me ofuscam, me queimam. Gastão está deliciado. Nunca viu um programa tão bom na televisão.

 

A LEITURA

POR ALICE GAMA

Aluna do 3º ano do Ensino Médio(18 anos)

 

O Anão no Televisor : a metáfora da opressão

Esta produção textual de cunho ensaístico tem como objetivo expor os resultados da interpretação do texto O Anão no Televisor, de Moacyr Scliar. Para esta leitura utilizaremos alguns conceitos da psicologia e da filosofia,  a fim de  estabelecermos as relações devidas entre o texto (o mundo fictício) e, a realidade (mundo real). Consideramos ainda, os elementos do texto narrativo como construtores da metáfora que desvendaremos a partir desta estrutura. O método utilizado neste  Ato de Ler obedece o processo da análise e interpretação desses elementos e a relação que estabelecem entre si no contexto do texto e com a realidade.

O conto “O Anão no Televisor”, do escritor gaúcho Moacyr Scliar, revela, a partir da metáfora do anão no televisor, uma experiência de como o controle social exerce opressão sobre o indivíduo e sua identidade. É possível compreender na estrutura deste texto o narrador – o anão – revelando-se através da exposição de sua relação com o personagem Gastão e do próprio ambiente em que ocorrem as ações.

Inicialmente, para compreender esta metáfora, é importante observar a etimologia da palavra “anão”. Anão é um termo do século XIV, oriundo do latim nanus, este por sua vez é um empréstimo do grego nánnos, que exprime a noção de dimensão reduzida ou de parte. Desse modo, podemos entender o anão como uma parte do próprio Gastão.

Ademais, é válido construir um retrospecto histórico de como as pessoas com nanismo eram tratadas na sociedade. Antes mesmo de Cristo, há mais de 2023 anos, os anões eram vistos como criações bizarras do mal, utilizadas em rituais e sacrifícios. Posteriormente, na Idade Média, foram ridicularizados como bobos da corte e desde então são marginalizados. Assim, entende-se o anão do texto como algo pecaminoso, oprimido e anormal, que só pode se libertar se o narrador quiser: – “Eu poderia sair se quisesse, mas não quero” (página 83).

            Acentuando essa prisão em que o narrador se coloca, temos o fato de ele estar em um televisor. O ambiente em que ele vive, além de impedir que ele se liberte, também propaga uma imagem ilusória de quem Gastão é. Essa aparência cativante de homem de negócios é apenas uma dissimulação, procurando ocultar o anão em seu interior. O renomado escritor uruguaio Eduardo Galeano dizia: “somos o que fazemos para mudar quem somos”. Isto posto, percebe-se que esconder essa parte do Gastão se tornou tão importante para ele que os televisores se transformaram em uma prioridade, por esse motivo, estão no piso mais alto da loja.

            Além disso, ao refletirmos sobre como a morte do pai obrigou Gastão a abandonar o curso de arte dramática, podemos entender que esse acontecimento impediu o personagem de continuar sua jornada de autoconhecimento, representada aqui pelas aulas de teatro. Essa foi a fase da em vida em que Gastão construiu seus valores, mesmo que de forma imperceptível, uma vez que quando crianças as lições são ditas e repetidas inúmeras vezes. À medida que o jovem vivencia os mais diversos modos de comportamento humano: ri, chora, ataca e questiona, ele descobre uma série de concepções. Similarmente funciona o teatro, não é por acaso que essa é uma arte de natureza revolucionária e transformadora, apta para contribuir com o resgatar do indivíduo em sua totalidade – corpo, mente e espirito. Por essa razão, o teatro foi o lugar onde Gastão se encontrou realmente, ou seja, o lugar onde conheceu o anão, seus desejos mais íntimos e, consequentemente suas frustrações e medos. Porém, quando teve que deixar essa paixão e essa juventude fascinante para tomar conta dos negócios, ele se vê em um novo contexto, no qual não há mais espaço para o curso; a fase da “inconsequência” acabou.

Gastão tem medo de libertar o anão, medo de conhecer-se mais a fundo e de olhar internamente. Para ele é mais fácil continuar a se esconder do que mexer com que está quieto. Esse comportamento é explicado pela psicanálise: a grande força motriz da nossa estrutura psíquica está exatamente na tentativa ininterrupta de manter fora de nossa consciência os nossos desejos inconfessáveis. Para Gastão, isso acontece quando ele escolher manter o anão no televisor mesmo durante a noite, quando a chave-geral da loja é desligada e não há mais necessidade de transmitir imagem qualquer.

À vista disso, percebe-se que o personagem Gastão, além do medo de descobrir verdades sobre si, apresenta certo preconceito com essa sua parte escondida. A respeito dessa repressão, a frase “conhece-te a ti mesmo”, normalmente atribuída ao filósofo grego Sócrates (479-399 a.C.), afirma que somente após abandonar os seus preconceitos o sujeito está apto para buscar o conhecimento verdadeiro. Dessa maneira, o anão só poderá ser liberto quando Gastão desconstruir seus conceitos de “ser ideal” e dedicar-se a sua própria aceitação e autocompreensão.

No final do conto, quando Gastão se encontra com o casal de funcionários, observa-se, explicitamente pela primeira vez, o segredo de Gastão. Não através de palavras, mas sim de atos. Segundo o psicanalista Freud, “nenhum ser humano é capaz de esconder um segredo. Se a boca se cala, falam as pontas dos dedos”. É a partir daí que surgem os impulsos, golpes involuntários de seus segredos e desejos.

Subsequentemente, o televisor é desligado e com ele o anão é aniquilado. Uma das possíveis interpretações para essa cena é que, após Gastão não ter sido correspondido pelo funcionário, o personagem se culpa por suas ações e desejos, buscando uma forma de se martirizar. Para alcançar esse “eu ideal” e essa vida perfeita, Gastão tende a se criticar, a se culpar quando algo dá errado e a experimentar sentimentos de vergonha e medo. Para Freud, o sentimento de culpa está relacionado ao ato de fazer algo que se reconhece como "mal".

Portanto, o sentimento de culpa de Gastão é o preço que ele paga por viver em sociedade, é o resultado de uma auto opressão e de um controle social que reprime a sexualidade, a alegria, a juventude, o ócio, a descoberta. Assim, há uma contradição entre as exigências humanas ligadas ao princípio do prazer e as restrições impostas pela civilização. Dessa divergência emerge a culpa.  Sob essa ótica, Freud diz que a culpa é estrutural, próprio dos processos de organização do psiquismo do homem, do fato de ele existir, de ser, pois ele só pode ser e existir como homem dentro da civilização. Gastão representa este eterno conflito humano, cujo âmago está na célebre frase de Hamlet, personagem sheakesperiano: “to be, or not to be, that is the question”.

Conclui-se assim, que a metáfora do anão no televisor é uma representação da culpa e da tentativa de esconder/prender parte da identidade de Gastão. Isso, graças aos mecanismos DE que a sociedade dispõe para controlar o comportamento humano de acordo com as normas e valores estabelecidos no meio social. O filósofo e teórico social Michel Foucault dedicou sua obra “Vigiar e punir” para o entendimento das formas de controle social externas e internas. Segundo o autor, a construção do sujeito dócil, útil e submisso à ordem estabelecida é possível apenas por meio de processos “disciplinadores”, nos quais o corpo e a mente do sujeito são moldados de acordo com o que se pede no meio social.  O personagem Gastão, é, portanto, forçado pelo processo de construção de uma consciência guiada pelas regras e normas de uma sociedade. Essas formas de controle exercem força sobre a sua individualidade, de forma que ele delimita suas ações de acordo com o que aprendeu ser certo ou errado.